Valdilene Oliveira Martins*
Em um país como o Brasil, culturalmente misógino e preconceituoso, que, segundo o IPEA, ocupa o 5º lugar no ranking mundial de mortes violentas de mulheres, onde vigoram, de forma gritante, as desigualdades de gênero, étnica e social, a pauta feminista se volta para a violência contra a mulher, considerando que, diante da ineficiência do Estado, a garantia e a efetivação dos direitos das mulheres tornam-se muito mais difíceis. Para propormos e buscarmos soluções que sejam eficientes, efetivas e eficazes para essa problemática é preciso que compreendamos a realidade brasileira através das lentes das teorias feministas, que buscam, principal e especialmente, pela equidade de gênero.
A Lei Maria da Penha veio trazer mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e eliminar todas as Formas de Discriminação contra elas. Assim sendo, depois da vigência desta lei, a violência contra a mulher passou a ter VISIBILIDADE, então, mulheres que, há anos, passavam por este tipo de sofrimento, começaram a se sentir encorajadas para denunciar, tornando os seus casos públicos.
De acordo com a ONU, ela é uma das três melhores leis do mundo. Ela é hibrida e transita pelos âmbitos cível e criminal, além de possuir três eixos principais no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres:
1. Prevenção e Educação;
2.Combate e Responsabilização;
3. Proteção e Assistência a vítima.
O eixo da prevenção através da educação, com o qual quaisquer pessoas podem contribuir, é, sem duvidas, a via principal para que possamos rever os nossos conceitos, com o fito de promovermos uma ampla mudança, em princípio na nossa própria conduta, depois na forma de educarmos as nossas crianças, construindo assim, uma nova ordem, para que o mundo se torne um lugar melhor para se viver.
O combate e responsabilização é eixo indispensável, extremamente necessário, mas que, por si só, não resolve, não previne e não reduz a reincidência.
A assistência jurídica à mulher em situação de violência doméstica e familiar encontra-se dentro do eixo de proteção e assistência à vitima.
Esta assistência jurídica, de acordo com a lei, é obrigatória, ou seja, o Estado deve oferta-la às mulheres em situação de violência, conforme consta nos artigos 27 e 28 da referida lei.
Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei.
Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado.
Com o artigo 27 da Lei nº 11.340/2006 cria-se uma modalidade de assistência obrigatória, pois quando o legislador utiliza a palavra DEVERÁ, impõe-se a assistência, tornando-a obrigatória em todos os atos processuais, diferentemente da assistência à acusação contida no Código de Processo Penal, em seu artigo 268, onde a assistência à acusação é uma faculdade atribuída às vítimas:
Art. 268. Em todos os termos da ação pública, poderá intervir, como assistente do Ministério Público, o ofendido ou seu representante legal, ou, na falta, qualquer das pessoas mencionadas no Art. 31.
Portanto, havendo conflito entre uma norma geral, neste caso o Código de Processo Penal e uma norma especial, a Lei nº 11.340/2006, a norma especial deve prevalecer e, por ser uma assistência obrigatória, não deve existir margem de discricionariedade que possibilite a intervenção do juízo de admissão pela(o) magistrada(o) ou pelo Ministério Público, inclusive, algumas(ns) doutrinadoras(es) defendem que o descumprimento dessa determinação legal, pode gerar nulidade processual, em caso de ocorrer prejuízo a vítima.
O artigo 28 estabelece que a mulher em situação de violência doméstica e familiar deve ter acesso à Defensoria Pública, tanto na fase policial quanto na fase judicial, ressaltando que a própria ofendida pode requerer as medidas protetivas, contidas nos artigos 22, 23 e 24, mas ainda falta informação, a regra é que essas mulheres não sabem que é obrigação do Estado, lhes fornecer as assistências social, psicológica e jurídica, em casos de violência doméstica.
O déficit de equipe técnica (assistentes sociais, psicólogas, advogadas) é imenso, por todo o pais. As defensorias públicas não possuem recursos humanos suficientes para atender todas as demandas, torna-se humanamente impossível atender a todos os casos de mulheres em situação de violência, posto que a defensoria pública é para atender a outras lides jurídicas, além das criminais.
Com essas dificuldades, no âmbito jurídico, vislumbra-se a advocacia dativa, como uma saída para amenizar este déficit na assistência jurídica que deve ser, obrigatoriamente, oferecida, a essas mulheres, pelo Estado. Contudo, é necessário que essas profissionais do direito, sejam capacitadas e, sobretudo, sensibilizadas, para atuar na assistência jurídica às mulheres em situação de violência doméstica, pois, para atuar nesta área é necessário que a profissional possua determinado perfil, com um olhar diferenciado, empático e cordial, para que não haja risco de julgar ou de revitimizar essas mulheres.
Ressalte-se que a violência doméstica é um fenômeno bizarro, extremamente sui generis, pois a vítima, além da vergonha e do medo, ela é refém do afeto e do amor que possui pelo seu algoz.
A mulher em situação de violência necessita de várias coisas… do apoio e da ajuda da família, das pessoas amigas, de colegas de trabalho e, sobretudo, da ação efetiva do Estado, se tem uma coisa que essas mulheres NÃO NECESSITAM, é de JULGAMENTGOS.
No Brasil, poucos municípios possuem os equipamentos necessários para a prevenção, combate e enfrentamento à violência contra a mulher, tipo os descritos abaixo, dentre outros:
1. CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) – que visa a prevenção da ocorrência de situações de vulnerabilidade social e risco nos territórios,
2. CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) – que visa o trabalho social com as famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e social por violação de direitos,
3. Coordenadoria da Mulher – que visa formular, coordenar, promover, executar e acompanhar políticas e diretrizes pública de gênero no Município, bem como desenvolver projetos visando o combate à discriminação de gênero e a defesa dos direitos da mulher,
4. CREAM (Centro de Referência de Atendimento à Mulher) – que visa prestar o acolhimento e atendimento da mulher em situação de violência, bem como monitorar e acompanhar as ações desenvolvidas pelas instituições que compõem a rede,
5. Conselho Municipal de Direitos da Mulher – que visa deliberar, contribuir na normatização e fiscalizar políticas relativas aos direitos da mulher, propondo-se a ser um centro permanente de debates entre vários setores da sociedade, além de ter função consultiva.
Desta forma, com a precariedade de equipamentos como regra, o trabalho em rede se torna mais difícil, a informação não chega, a coisa não anda e os processos não fluem e não acontecem da forma que deveriam.
Ainda dentro do eixo da Proteção e Assistência a vítima, encontra-se a educação e a reabilitação para os homens autores de agressão, constante no inciso V do artigo 35 da Lei Maria da Penha:
Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências:
I – centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar;
II – casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar;
III – delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar;
IV – programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar;
V – centros de educação e de reabilitação para os agressores.
Em se tratandp de violência e discriminação contra a mulher, é necessário levar em consideração as relações social e culturalmente construídas, entre homens e mulheres, forjadas com base em estereótipos que determinam papéis e características para ambos os sexos, bem como, se faz mister reconhecer as relações de poder exercidas no convívio de homens e mulheres.
Desta forma, a punição por si só, não surte o efeito desejado. È necessário que se busquem soluções que atinjam as partes envolvidas, portanto, se o homem faz parte do problema, obrigatoriamente, ele deverá fazer parte da solução, devendo ser também acompanhado, psicologicamente, através de grupos reflexivos, de maneira que ele consiga resignificar a forma de se relacionar consigo mesmo, com a sua prole e com as mulheres, desconstruindo a visão machista de suposta supremacia masculina e a visão misógina de mulher como “coisa”, extensão do seu patrimônio, sobre a qual, homens abusivos entendem ter poder de vida e morte sobre elas.
Portanto, os grupos reflexivos para homens autores de agressão são de fundamental importância para o processo de reabilitação destes, pois inibi a reincidência, contribuindo de forma eficaz para a erradicação deste câncer social, que é a violência doméstica. Além do mais, os autores de agressão, em regra, não se vem como culpados, muito menos como criminosos, sentem-se injustiçados e acreditam apenas que, ao agredirem essas mulheres, estão respondendo à provocações feitas por elas e exercendo o seu “direito” de macho, pois a violência é o principal instrumento da masculinidade tóxica, estruturada pelo machismo.
Graças às lutas feministas, hoje a legislação brasileira não dá mais suporte à sujeição feminina e não contribui mais com a perpetuação da desigualdade de gênero, tornando-se mais um braço na luta pela equidade de gênero
“O machismo é uma ordem posta, vigente e cruel que avilta, lesiona e mata mulheres todos os dias, o feminismo é uma reação a essa barbárie.”
Valdilene Oliveira Martins, advogada, feminista e ativista negra.
“Lembrem-se como é o símbolo do direito, nas mãos da deusa Themis, de um lado está a balança, do outro a espada… a gente já usou a balança demais.”
Valdilene Oliveira Martins, advogada, feminista e ativista negra.
*Valdilene Oliveira Martins
Advogada de família e criminalista, que atua exclusivamente na assistência jurídica de mulheres em situação de violência doméstica e familiar, presidente do Instituto RESSURGIR Sergipe